No guardanapo do avião


Queria falar moça, esse guardanapo não pode fingir esse poema.

 

Tem um poema nesse guardanapo desse avião, ele é de mentira, moça

 

Mas não digo nada, nos calam a boca com esses biscoitos hidrogenados de graça

E me resta contar a temperatura que a tela anuncia

22 graus, nem mais nem menos, 

Encurralada na precisão

 

nos meteram bem metidinhos aqui...

 

 

Entrego esses coraçõezinhos usados por todos, pequenos e banais.

 

 

Está barato onde nos acostumaram.

3g barato, celular parcelado, até voar podemos

rotas pra ninguém pegar destino sem rota

 

Ninguém nega a rede liberada, o ar poluído de graça, a água clorada de graça

 

O jornal o dedo rola, carrega coreszinhas brilhantes e pegajosas

e do outro lado 

nem sequer jornalista, 

nem se quer sabemos que casa

essa mentira terá

 

Queria falar moça, esse guardanapo não pode fingir poemas. É caro um poema, não é assim.

 

A luta é sempre cara, 

Vai te custar a vida social

 

Juramos amor à liberdade, mas sem riscos.

Juramos como adolescentes que juram que um amor durará pra sempre e não sabem o que é o amor

 

Se desaparecermos do mundo dos dígitos, se os memes me largarem
se você se escapar em um poema e de repente te ver nua
se o tempo de antes
o tempo querido nos encontrar meio abertas ainda,
ainda respirando, olha...estarei com a retina cansada

 demais 

pra lhe dar os olhos que eu queria

Daria esse olho lascado

Espero que entendas

 

Esse mundo maquinando-se nos banheiros pra entrar no serviço, na live

 esse mundo 24h onde a atendente não pode se sentar que o patrão tira-fora que nem lixo e não tem advogado nem povo que a erga.

 

Esse mundo de merda, nesse mundo os poemas agora são fake. Imprimem poemas no guardanapo do avião pra te infernizar a liberdade que sobra 

Nos esnobam.

 

E vamos nos limpando a boca com guardados assim que te dizem "tenho tempo para versos, você não". Depois de comermos esses biscoitos de gordura hidrogenada de máquinas chinesas, sob os olhos de aeromoças-garçonetes cansadas.

 

Nem imaginava que um dia até as nuvens seriam assim. E as asas não mais metáforas da alma, só metais, e te moverias do nada pra lugar nenhum, e em todos os casos, deves no cartão.

 

Nesse chiqueiro digital, nos engordam pro abate do tempo.

 

Agora a aeromoça triste, cansada, pega os lixos que usamos todos iguais. Ela voa todos os dias sobre esse mundo. Dormirá com amores reais em alguma parte ou sua sina é vagar entre nuvens ?

 

Estamos sobrevoando Bahia e essa senhora conta tudo como se contava de antes..com sotaque usando as mãos pra mostrar o tamanho do peixe.. Ela fez, eles fizeram, todos cozinham. Ela tem sua cara morena e ribeira. A filha escuta como quem nunca viajou de avião e é de terra. Não importa as certezas. Elas falam de "Ester.." de "vou sim"..."gosto de peixe.." Ela diz que é doida por peixe. Moqueca. As palavras brotam em sua boca. Essa senhora fala de peixes como quem não se importa com esse voo e todas essas máquinas tristes. Ela não está triste. Está falando do Tião que cozinhou e deixou o peixe pronto.

Falou 10 vezes a palavra peixe e só faz ressaltar o chiado do peixe... "esse peixe não tem espinha não", diz, rediz, peixe, "peixe na barriguinha".

Ela segue falando uma música que conheço...

Olha o tempero, fala

Ela não está quieta. Está dizendo que foi na casa de Tereza... e conta tudo lentamente. Essa senhora não está indo a algum lugar estranho, ela está habitada por seus rios e essas palavras como sandália velha e boa. Conta movendo os pés e acariciando seus dedos enrugados.

As nuvens foram tomadas pela empresa. Essa mulher está em casa. 

Ela carrega em cima da sua bolsa um pano de prato colorido do Bendez. Nunca vi alguém levar pano de prato nessa ocasião. É porque ela segue em casa. Enxuga o nariz, era para isso o pano. Fala como que numa cadeira de balanço olhando pra árvore.

Ela está olhando pra dentro, pra esse quintal, pro Antônio que vai trazer os peixes para sua neta.

Ninguém conseguiu tirar essa senhora da sua cadencia pausada, se apoia num galho pra falar.

Ela fala da hora, da hora que saiu de casa, que horas foi, minha filha?

- Tá sentindo que vai baixando ( o avião)? - diz pra neta.

2min depois o piloto diz

"Tripulação início da descida".

Essa senhora foi quem notou o deslizar leve nas nuvens, não notei nada. Ela não está apenas no tempo de antes. Está aqui mais que todos nós.

Então ela passa por cima de mim pra olhar a janelinha.

Tem uma graça de se assomar intimamente às coisas, cabelo na orelha e traços indígenas.

Como passou pelo meu colo, tomo liberdade de perguntar da onde é.

- Do Acre.

- Ah que lindo.. não conheço, quero muito conhecer.

- Ah então você tem que ir. Porque eu to vindo pra cá pra Bahia e você agora tem que ir pra lá e me sorri marota.

Não é que ela queira ser profética, mas essa mulher que está onde está... que vem desse lugar que a segue e arrodeia, essa mulher é um oráculo da despretensão... e que me importam esses poemas tomados, ela fala e sinto o cheiro de peixe.

 


 


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