Menos o barro
Não é todo dia que lembramos da casa da Suelen da infância, com suas revistas de arte postas sobre uma mesa de vidro triangular. As capas das revistas importadas de Suelen exibiam para todo o bairro o mais fino da arte e ninguém as abria, porque em cima havia adornos pesados nordestinos.
Na época eu achava que Suelen sabia de arte e arte era uma revista da Suelen em cima de uma mesa de vidro e que ninguém abria por respeito.
Hoje lembrei de Suelen e suas revistas, porque uma amiga me trouxe uma dessas. "Um compendio de arte da Bienal de 2006. Trabalhei nisso". "Não sabia que tinhas trabalhado com revista de Bienal alguma vez" e ela só respondeu desencantada "Eu era só uma mula pra lá e pra cá, ouvindo xingadas".
Não pedi para folhear a revista, por respeito. Estava mais interessada na cara de minha amiga de desprezo por aquele a borratado de papel. E sentou batendo na revista como um martelo de tribunal, "Tinha um artista americano Nick que se dizia brasileiro, um dos convidados, um infiltrado, passei meses servindo ao tipo".
O americano lhe mandava e desmandava à distancia. "Mas artista faz obra à distancia?" perguntei à ela. " Claro, só! Me pediam uma lista infinita de detalhes. Você acredita, que Nicky me pediu para coletar pó, sabe, barro, TERRA do Paraguai e de mais 68 lugares? Terminei em Santa Maria, me lembro de viajar 3 horas, chegar na beira do brejo, raspar a mão no chão, pôr no pote o troço de terra e voltar pra casa, mais 3 horas de estrada."
Sua cara de exaustão perdurava olhando o vazio. Imaginei ela cruzando com frascos para lá e para cá, o rosa em Piratini, o verde em Cruz Alta, o marrom forte em São Francisco de Paula, os envazes guardados no seu apartamento pequeno, ela enxotando o gato pra não quebrar tudo, 10 meses de viagens e o alívio de colocar todas a extravagâncias no almoxarifado do pavilhão 7.
Apenas uma semana antes da estreia da Mostra, recebeu Nick no pavilhão 7. Disse que quando ele chegou, ela estava toda suada, com uma blusa toda respingada dos barros e que ele tinha uma camisa impecável, branca, minimalista e tinha um centro com a frase: ao pó voltaremos.
Assim que chegou, Nick foi preparar seu espaço na Bienal, ficou meia hora e depois voltou ao hotel. A comissão de mulheres que limpava o pavilhão encontrou uns baldes, todos sujos, na região onde seria dedicada ao famoso artista americano, "ele é exigente", diziam, então limparam tudo e tiraram fora aquela terra às pressas dali.
No dia seguinte minha amiga recebeu um telefonema aos gritos e xingadas americanas, aonde estavam os baldes com toda sua arte?
Mas a vida de um Artista verdadeiro é assim mesmo, cheia de percalços, me dizia na infância Suelen nas reuniões em sua casa elegante. "Assim o fez Claude Monet, que mesmo com catarata seguiu pintando, apenas com tons mais avermelhados, ou Toulouse Lautrec que quebrou os fêmures e seguiu com 1,52 de altura criando". Suelen passeava em minhas lembranças, contando essas histórias a todos, ela, a única que sabia em tipo de coisa .
Minha amiga já fazia de tambor o livro da bienal e íamos pelo terceiro café com amendoins, faltava muita história.
Contou então do artista colombiano, Mateu, delicado, criar borboletas em dobraduras: "usava até um bisturi, imagina a precisão das asas". Sua obra era exaustiva e bela "gastou todo seu orçamento numa loja de papelaria com as melhores canetas, estiletes e papéis. Era um artista concreto e fabuloso, pensava ao começo. "Até que me pediu que cuidasse das laranjas"
- Que laranjas?
- Ele inventou de colocar uma laranja na esquina da Andradas com um holofote em cima.
- Que?
- Sim e todos os dias, eu tinha que ver se as laranjas ainda estavam, se tinham apodrecido ou se alguém as havia roubado. Um dia cheguei em casa exausta e lembrei das putas das laranjas do Mateu e tive que voltar pra esquina.
A história de Mateus estava cheia de dobras. Ele escolheu uma cidadela do Rio Grande do Sul, uma casa abandonada, para expor sua arte e as dobraduras tomaram todos os cômodos escuros, trazendo o que um bom artista traz a qualquer lamaçal: redenção. Só aplausos e fotos. Mateu brilhou com sua camisa leve e despretensiosa azul clara.
Porém no outro dia, minha amiga recebeu um telefone com o anúncio. "Roubaram a borboleta!"
Um mês de Mateu cirurgiando aquelas pequenas asas, o suor que evitou que caísse, o café que evitou que se aproximasse, o esplendor das flores caribenhas que dedicou a cada milímetro de asa. Mas alguém de São Gabriel simplesmente pegou a borboleta de papel e disse a si mesmo:
- Que valeria um papel furadito desses?
Minha amiga disse que depois disso, entre os produtores, cantavam: "a borboleta do Mateu Voló voló voló". Brutos, pobre Mateucito.
Um dia antes da exposição oficial da bienal, depois de nosso Michelangelo colombiano ter refeito a borboleta, e libertado do papel cadeirinhas, barcos, seres voadores, animais, gente, casas, a produção decidiu contratar, por precaução, uma vitrine horizontal que evitaria qualquer danos e roubos durante a mostra oficial.
O destino, porém, atravessa os mais castos e delicados com a mesma fúria que desanda povos inteiros com maremotos, guerras e vulcões.
Contou minha amiga que ele vinha com sua bicicletinha e seu corpo esguio pelo centro de Porto Alegre e ia entrando nos pavilhões, quando ela correu para interditá-lo.
-Querido Mateu, que calor não? - e assim foi dando-lhe sorrisos e amenidades, até que a dez metros do pavilhão 7, lhe revelou a verdade.
- Mateu, aconteceu um acidente...
Sua cara amassou quando viu todas suas obras aplastadas pelo duro vitraux espesso mal posto pela comissão de arquitetura. - O móvel cedeu... - Disseram em voz baixa...TUDO aplastado. O pobre apenas puxou o cabelo em pânico.
A equipe de montadores teve que refazer cadeirinha e tracinho por tracinho das dobraduras, o artista endureceu la mano, dezenas de pessoas, deixando tudo como tinha projeto o Mateu-borboleta. E como o xingavam, puto, como maldiziam as dobrinhas. Malditos artistas todos. Horrendas borboletas.
Porém nada se comparou ao caso de Elvira, disse com ares de Gran Finale minha amiga.
A artista argentina tinha grandes planos. Ela era uma escultora de árvores renomada. Minha amiga estava muito interessada em seu trabalho.
- Gostaria que minha instalação fosse nas Missões. Quero criar uma escultura em uma árvore guarani.
Minha amiga demorou dias para regularizar os trâmites com o IBAMA até liberar o trabalho. Quando conseguiu, foram as duas juntas conversando na van, minha amiga comentou que estava animada, ao lado de uma artista enfim tranquila e interessante.
Ao chegar e verem a árvore aprovada, Elvira apenas comentou:
- Muy bien, agora, só falta o artista - não preciso dizer que todos butiás caiam do bolso da minha amiga despacito.
Elvira Pontes, a TOTALMENTE aclamada.
Lá foi minha amiga por São Miguel das Missões, atrás de algum humilde marceneiro. Encontrou enfim, um senhor que esculpia árvores e aceitou o humilde trabalho de não ser ninguém.
Quando minha amiga lhe perguntou a profissão, ele lhe respondeu Borracheiro. Não se disse artista o artista.
E ficou perfeita a escultura do borracheiro assinada com o nome de Elvira.
A lista dos 9 artistas da bienal ainda teve outros Leonard, aquele exigiu uma moto para sua instalação na fronteira com Uruguai e minha amiga lhe respondeu. - Não há orçamento para comprar uma moto. - Mas ele exigia-e-exigia uma moto. Até que minha mula amiga teve que pedir emprestado: "imagina sua moto de coleção ali exposta na Bienal, Seu Antonio". Seu Antonio enfim aceitou e com todo cuidado levaram a moto para fronteira, em nome da arte, tudo sim.
Mas ninguém sabia que os planos conceituais de Leonard eram cobrir a moto com centenas de pedras. Taparam tudo entre Brasil e Uruguai. Quando a foto da obra de Leonard saiu nos jornais minha amiga recebeu um telefonema.
Pietro pediu que escrevessem um poema em letras de barro do tamanho de 1 metro de altura cada palavra e o poema teria que tomar o centro pavilhão 7. Mas nenhum molde dava certo, as letras rachavam, não saiam da letra A. Então os produtores, cansados, exaustos, enojados, meteram cimento dentro da forma e encaparam todo poema com pinturinha de barro. Pietro nem percebeu, chegou para ver seu poema no dia da Bienal.
Rômulo, o mexicano exigiu uma forma gigante para fazerem uma escultura de gelo. E fiquei imaginando a cena de minha amiga acompanhando o carregamento de Cubos enormes de gelo na área calorosa de Santana do Livramento e o povo vendo a arte derreter.
- E como foi essa bienal?
-A exposição foi um sucesso. Todos saíram aclamados.
Menos o barro.
Devia ser o barro o que escondia as revistas de Suelen.
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