Um zorro em Berlim

 Sentada naquele sofá caramelo aveludado disse a ela que existia vida selvagem, mas ela me olhou desconfiada e me chamou de Romântica. "Essa visão romântica alienada é um problema" - disse pausadamente.

Me lembrava  dessas palavras, quando saia da estação com medo de acontecer algo, o parque na frente, o estádio atrás, ninguém, nada, neve e um medo de aparecer um assaltante na madrugada, mas era só vazio. 

Ontem fui visitar Nina para tomar um ar, fazia 5 anos que não nos víamos. A vi com um cara uma vez no brasil, eles me convidaram para passarmos a noite juntos, mas ela é que me parecia interessante. Então chegando, pensei, como será que ela está?

Ela vive nesses apartamentos da Berlin oriental, onde ainda dá pra perceber o ar russo, cheguei cantando a internacional e feliz que ali os semáforos funcionam mais ou menos e a gente pode correr quando está vermelho sem que te deem bronca.

Um país que respeita sinal vermelho de pedestre. Me assusta muito isso.

Peguei uns blusões de segunda mão na loja de pulgas da esquina, um chocolate para ser gentil, mas juro que pensei, "será que ela aceitará de bom grado um ferreiro Roche, essa marca tão capitalista..." 

Ela me recebeu gritando comedidamente na rua, apenas para avisar que estava ali...nos abraçamos forte.

Subi pelo seu prédio antigo - aqui são sempre com tapetes vermelhos aveludados nos corredores. Afora é tudo quase sempre opaco e bege, só dentro eles se permitem cores. 

O apartamento parecia portoalegrense cheio de plantas, livros, Frida Khalo e cartazes. Casa compartida porque em Berlim, é a opção que sobra com a crise imobiliária - ou segundo meu tio que vive de fazer velórios: "essa crise porque os velhos não morrem". 

Comemos algo vegetariano, chás, que ela servia enquanto falava dos imigrantes e de seus dilemas como servidora social, e me dizia "não sei se tens ideia do que está passando na Alemanha hoje? A questão do antissemitismo e da luta pela palestina está muito delicada".

Conversamos e as vezes estávamos perto no sofá, e tocávamos os pés, tentando encontrar uma intimidade, e fazíamos carinhos nas mãos enquanto uma escutava a outra. Mas logo nos envolvíamos em debates tensos, eu explicando sobre realismo fantástico e necessidade da poesia e ela rebatendo dizendo que há um romantismo que destrói a luta, uma alienação, uma careta em cima da pobreza. "não existe isso de pobre, mas feliz" ela dizia com seu espanhol com sotaque alemão. E eu falava de Facundo Cabral "pobrecito mi patrón, piensa que el pobre soy yo"...falávamos de outras pobrezas, outras afirmativas, outros enfoques que não se encontravam. E sei do que ela falava, ela estava certa, não poderia se entregar assim tão fácil a golpes de palavras.

Ainda mais que de repente eu vinha falar de paz e amor a la Pachamama. A espiritualidade que eu queria lhe contar, a estética, a paixão latina, ela via como seus parentes alemães indo a florestas tomar ayuasca, plantar orgânicos, e dizendo como todos indígenas eram anjos, e tudo isso enfraquecia e era mentira, generalização burda..

Eu estava falando de outra coisa, talvez a paixão da Internacional latino-americana fluía em mim, e eu tocava seu braço querendo dizer, saia da cabeça e pus isso em palavras e aí descobri...que nunca se deve dizer isso a uma alemã, nunca lhe diga "saia de sua racionalidade". Jamais...e ela disse brava que isso a molestava, e interrompemos a massagem e o que ia se desenhando com velas e cobertores do México se enrijecia como um monumento pichado da Berlim soviética. Fiquei abaixo de zero, sem saber como seguir a conversa. 

Falei de ir pra escapar do frio. E ela se ofereceu de me levar para pegar o trem de volta. 

Mais de meia noite, eu perdida nas ruas de Berlin.

Que tonta, disse pra ela tanta coisa, e me pergunto para que dizer tanta coisa, para que falar da vida selvagem, de que todos podemos ser assim, essa minha mania de pregar a saída do zoológico e falar de ternura que soa como fraqueza, como se eu fosse um raio de ursinhos carinhosos partindo o mundo dela q já está todo partido, e ela é tão intensa no que faz, ajudando as crianças palestinas a entenderem o que está acontecendo, suas dores, seus dilemas de viver em lugares aglomerados e serem filhos de BIBOP ela dizia, aqui é assim que se chamam os marginalizados. E ela se questionava e questionava,  dizia quem é ela branca para ajudar, quem é ela para isso e aquilo... Eu só queria dizer que ela pode qualquer coisa.  

"A mente travada na ideologia, como se antes tivesse q optar pelo inseto e o inseticida."

Não deu para passar a noite beijando o canto dos seus olhos cansados. Pensei que ali encontraria algo brando...e ela me perguntou que é a palavra "Blando"?...falei agua na pedra, agua na pedra, nao pedra na pedra. Mas ela nao gosta dessa palavra.

Falei, de Galeano, de Djamila, de Kusch, le isso e aquilo. Como se nunca mais fossemos nos ver, e pelo menos ela poderia entender da brandura que estou dizendo, não tem nada a ver com afrouxar. 

Ela tem um exército de libertação na aura. 

Me contou algo bonito, ela recebeu os zapatistas em Berlim, pode ficar 3 dias com eles, contaram dos dilemas que estão tendo em México com o trem Maia. Ela me perguntou se lutamos pelos indígenas, se vamos as ruas, se ajudamos com dinheiro, se somos realmente seus irmãos.

Me senti num tribunal da moral revolucionaria. mas disse sim...com um pesar... de estar adiante de alguém que só te dirá companheiro se você der na letra....- Sim estamos implicados no que nos é possível, no que podemos, mas para alguns nunca será suficiente.

Nunca poderemos suprir as expectativas dos outros. E ela disse a frase do milhão "eu já fui tonta como você, mas agora não consigo"

Falei que ia fazer uma camiseta com essa frase "esme, já fui tonta como você, mas agora não consigo".

Minha ultima tentativa foi falar dos cronópios, tenho uns advogados de defesa terríveis, que não convencem ninguém. ia chamar Clarice para dizer que há vantagens em ser bobo.

mas a gente terminou em nada. Porque essas referencias são nada para ela. Ela me levou pro terminal, fui com cabeça baixa, ela pedia desculpas sem saber que aconteceu e ela disse "os alemães somos muito diretos, desculpe". eu disse que estava tudo bem, estava aprendendo a me comunicar e esse era o momento de aprendizado. Mas eu estava mal por dentro e dizendo internamente "que shceizen isso de ser direta", como se valesse algo.

Tanta cabeça - minha na realidade! - tanta prescrição antes do beijo, e ela tanto medo de se entregar a alguém não puro na revolucion.... não passei no teste, fui reprovada para qualquer intimidade, vi que ela queria. em   momentos seu olho tremia...a ponto de abrir-se...

Me perdi pelas estacoes, o trem interrompido, corria pela rua atrás do caminho de volta, a noite só ia piorando, um homem de Ghana me ajudou, um rebelde flaco com livro na mão me mostrou o U2 o nome do ônibus. As pessoas se ajudam ainda, depois você vai amenizando. Vi na capa do jornal que Lula estava por Berlin hoje, e me dei conta que aquela era comitiva poderia ser ele, aquela que passou por nós a tarde e brinquei - É meu presidente.

Nesse momento ia com minha mãe pela rua vestida de poncho, me sinto assim como super heroína, vestida de poncho, e Nina  não concorda que exista heroísmo, "romantismo assim", mas eu tava com a capa de poncho, e o Lula passou. E imagino que ele passou, viu alguém de poncho em Berlin. Porque  Lula é desses que olha a paisagem, olha as pessoas.  

No futuro minha memória mudará tudo isso e contarei a meus netos que encontrei Lula em Berlin, e lhe dei um abraço e disse "Venceremos, companheiro".

Nina a inventarei brincando com as crianças refugiadas de teatro do oprimido, esse que ela diz que não sente com legitimidade de usar como pedagogia e insisti para ela... "não se importe...va pa frente, deixa as crianças brincarem de teatro e contarem suas coisas". mas imagina se ela se permitiria usar uma técnica que não tem maestria e diploma na coisa.

"Derecho al deliro", lhe disse. Mas ela disse que era bonito isso, mas na prática nossa noite não houve nem um pingo de delírio. Parecia conversa de legisladores. Sou romântica, perdon.

Eu não sei se realmente queria conquistar qualquer aprovação dela ou lhe injetar uma adrenalina latina, um delírio qualquer.

Só sei que ela me olhou mal quando lhe falei de "ser humilde suficiente e perceber que a cidade corroe as pessoas, e ela deveria sair daqui as vezes." Para que tantas prescrições médicas como se eu soubesse de algo... Mas que fazer...dou testemunho de um mundo...que é tão tonto ainda.

Ela estava ouvindo minha pregação com desconfiança e disse incrédula: "aqui não tem mais nada selvagem".

Depois de horas de trem, ônibus, trem, sem entender as sinalizações alemãs, triste com o desencanto da noite, desembarquei na estação do estádio olímpico, fui lá fora e nem uma vivalma, só o parque na minha frente. Nada parece existir nos bosques de Berlim, nas ruas, ninguém ousa perambular a essa hora. Mas então vi correndo pela neve, bonito, com rabo longo e sutil vi o zorrito del monte... ah um poquito de casa...En berlin viven zorritos meu deus....pensei na hora 

"Viu, Nina bonita, há vida selvagem aqui sim!" e fui cantando e falando alto, cantando forte, e mesmo que as recomendações de todos fosse falar baixo, eu cantei alto pelas noites de Berlin.



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