Por Manoel
Senhor Roberto acordou como todos os dias, segurando-se na cômoda com uma das mãos e com a outra apoiou-se na lombar, franzindo o rosto pela dor. Vestiu a pantufa quadriculada de azul e rastejando-se percorreu o quarto, amassou o rosto contra o espelho, mexeu na barba sem animo de tira-la, espremeu um cravo e notou que seus cabelos brancos agora estavam cada vez mais ralos.
Há anos a mesma incursão ao banheiro. O xixi mantendo a mão nas costas, a curva entregando-se à parede e o rito de encadear tarefas, enquanto ouvia a urina cair. Em especial, lhe doía demais as costas.
Entrou no banho quente deixando a água cair onde lhe doía e orou os primeiros versos em murmúrios. Não pedia nada para si por orgulho de primeiro pensar na mulher que se foi, depois no filho que lhe deixou... Terminou o banho e olhou a imensa barriga. Precisava sair desse apartamento. Tomar um ar. Mas logo deixou essa péssima ideia partir.
Subiu ao teto para ver a vista da manha. Depois do desgaste da subida ali estava, repousando seu corpo na grade da laje. Seguia orando, conversando com os que dormiam ainda. Depois deu bom dia ao gato e franziu o rosto e lançou a mangueira de maneira homogenia sobre todos os vasos.
A essa hora escutou a campainha, teria que descer. Resmungou. Colocou a mão nas costas como protesto e começou a arrastar-se. Desceu o mais rápido que podia, mas a campainha seguia, e ele já via a irritação lhe tomar o corpo gordo, "Já vai"
- Quem é?
- Está dona Márcia?
- Não é aqui. Ela é do 203
Desligou o interfone aborrecido. Depois de alguns resmungos se sentou para se recuperar da descida. Pensou em quanto tempo não recebia ninguém. Ficou segurando o interfone olhando absorto o relógio. Desistiu das plantas, não tinha mais forças para subir.
Resolveu arrastar-se ao piano. Abriu lentamente o instrumento, e tocou com seus dedos a tampa, depois o pano protetor, e por fim, sem fazer ruído percorreu as teclas. Seu rosto mudou da dor a uma leve elegância. Começou a dedilhar com destreza o instrumento, eram graves os acordes. A musica lhe saia com a agilidade, diametralmente oposta a que tinha no resto do corpo. Havia aprendido sozinho a tocar, há muitos anos, depois que ela se fora.
Mais uma vez lhe tocaram o interfone, interrompendo. Mas dessa vez não se irritou. Com elegância fechou o piano, com alguma lagrima se levantou. Atendeu com tom grave o importuno:
- Quem é?
- Pai...
- Raul!
Seu Roberto se olhou no espelho, meu deus dizia, sem parar. Quantos anos. Esqueceu das costas e correu a trocar de camiseta. Colou a amarela, pouco usada. Se olhou novamente no espelho. Desceu pelas escadas sujas do edifício. A medida que descia começava a sorrir, a barriga revirava. Dona Márcia lia o jornal do dia, Onde vais tão apressado? Eram 4 andares que pareciam eternos. Mas nenhuma dor. Descia Roberto imaginando o que lhe haveria passado para essa visita depois de anos. Se aproximou do portão e estava ali não um menino, mas um homem que reconhecida pela maneira curva de apoiar-se na árvore. Meu Deus, a mesma maneira de apoiar-se dela.
- Olha que surpresa! - O jovem que olhava para a rua, olhou sorrindo seu pai.
- Olá, velho.
Sem demoras, Roberto abriu a porta.
- Pai.. - Se abraçaram apertado e com murros nas costas como costumavam fazer.
- Uma hora tinha que aparecer, não é?
- Vamos, subir.
Subiram sem se falar, Seu Roberto estava quieto, nervoso, mas ao ver dona Márcia, apresentou o filho.
- Não sabia que o senhor tinha filhos! - Disse a senhora com o tom maledicente de sempre.
Raul quebrou o gelo e perguntou ao pai.
- A Amazônia está maravilhosa, pai, tem certeza que não queres vir com a gente. Gostas de viver aqui?
- Gosto.
E monossilábico foi abrindo a casa, correndo a frente para arrumar o apartamento com roupas por todo lado. Ajeitava instantaneamente a bagunça enquanto dizia "bem vindo, raulcito".
- Que bonito piano! Não sabia que sabias tocar.
- Aprendi. O que me restou.
O clima esfriou, mas Raul estava diferente, não caiu nos reclames do pai. Pediu um café e disse a que veio.
- Vim te fazer um convite.
- Meu filho. Me conte primeiro onde estás morando.
- Manaus papai. Com Rosa, e...
- Estás feliz? Todo dia oro por você. Rosa? Essa é nova. Sabia da Marina. Não andas trocando de namorada como trocavas de time de futebol, não?
- Pai...Rosa e eu estamos alguns anos juntos já... e adotamos uma criança, foi esse ano.
- Meu deus.
- Sim. Sei que você ia estranhar. Mas.. Manoel chegou há um mês e tem 5 anos.
- Meu filho.. não sei o que dizer.. - Olhava para todos lados sem saber - Isso não me parece muito natural meu filho. Você poderia apenas fazer caridade.
- Pai!
- Desculpe, Raul.
- Esquece o que queria dizer.
Roberto tragou o café, colocou a mão na lombar, franziu o rosto, depois olhou o filho que havia crescido, meu deus, um homem. Pensava com lástima no abandono. Mas desarmou-se, diante do que não sabia, diante da surpresa talvez, há meses que estava rendido já, bandeira branca, devia ser essa época do ano...Sentou-se e abaixando a cabeça lhe tocou a mão:
- Desculpe meu filho, sou um bruto. Você sabe. Você é uma pessoa muito boa para escolher adotar uma criança. Quero conhecer o menino.
- Ele é encantador pai. Vou te mostrar.
Mostrou a tela com um menino com traços negros e indígenas exibia um sorriso iluminado.
- Tem os olhos do pai - disse o Roberto.
- Está chegando fim de ano, pai, não podes passar sozinho novamente. Lembra quando eras o papai Noel dos nossos natal. Era meio fajuto, mas nos divertíamos...Imaginei Manoel te vendo assim...
- Papai Noel - ria o velho. - Essa me surpreendeu Raul... Não era você que era contra essa farsa? Estou velho mesmo. Meu deus.. não sei se posso sair daqui...
- Acho que faria a alegria de Manoel ... Ele disse que nunca teve um Natal, e seu sonho era conhecer o papai Noel, que poderia lhe dizer?
Roberto foi ao piano e começou a dedilhar, enquanto pensava.
- Caramba, quero conhecer Manoel.
Fechou a porta despedindo-se do filho e arrastando-se chegou ao banheiro para olhar-se no espelho. Tinha um brilho estranho nos olhos, acarinhou a barba, a barriga. Vestiu uma casaca vermelha velha e a dor lhe fazia renguear perfeitamente. Caminhava agora perfeitamente pela casa.
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