Desacontecimento


 O dia que prenderam Manoel de Barros entraram em sua casa e ele escrevia. Estava quieto desenrolando um pássaro do varal naquele momento, sua cara ainda estava tomada de lua, era de manhã, mas ele já estava tarde. 

Entraram e prenderam suas mãos atrás das costas para que visse quem mandava ali. Aqueles sujeitos estavam de verde acinzentado. Não era o cinza do céu quando chove.

Manoel entendeu bem, que vinham para desfazer. Logo deram explicações:

- Há sérias acusações contra o senhor.

- Quais seriam?

- Falsidade ideológica... Andas dizendo coisas que você não é e coisas que não são.

Nesse momento um dos guardas levantou uma papel e formalizou o mandado:

- O senhor tem dado suficientes provas contra você mesmo há anos. Não lerei todas. - E sem jeito para poesia leu - "Só sei o nada aumentado. Eu sou culpado de mim." "Noventa por cento do que eu escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”.  

O outro guarda bravo retirava o velhinho do quarto de escrever, como tentando agarrar um peixe com as mãos no açude. 

- e deveria te dar vergonha escrever baixezas.

- Perdão? baixezas?

- Está encrencado, velhinho - completou o guarda saindo da sua velha casa - Andou de safadeza com quem não devia.

- Sim. Há mais acusações contra o senhor. 

Completou o outro guarda com veneno na baba da boca. Ele não quis dizer quais eram, porque era seu momento de assumir a narração da trama. E Manoel percebeu nele o gozo da elipse e teve empatia literária pelo homem. Ele então disse. "Corumbá, te soa familiar?"

Manoel lembrou. Anos atrás quando uma leitora dali o visitou no quarto de escrever e queria seu namoro. Ela tinha uma inclinação nos olhos - carecia da inocência dos bicos dos ipês. 

A moça chegou até seu joelho e lhe acariciou como se ele fosse um cachorro velho, depois olhou fundo e declamou um verso guardada do livro poesia Concebida Sem Pecado. E pronunciou tudo com jeito na língua. Mas Manoel não estava pra aquilo assim. Essa moça assim, lhe avançava sobre o parapeito da alma. Não cheirava a terra molhada, nem bem. 

Depois ela mandou cartas. Ele respondeu com borboletas mancas. Ela juntou raiva dessa gentileza insuficiente, era pessoa dada a juntar e não a ser rio.

Não lembrava agora seu nome, só a cara que tinha quando disse, ela era lenta na letra, para provocar calor. E dizia tantos adjetivos de louvor a Manoel, que sua mãe tinha ensinado ao pequeno Manoel, que quando é assim, o santo desconfia. 

Mas só agora desconfiava que é que acontecia nessa manhã. A moça...

- Tudo começa tocando um joelho bonito, não é mesmo, poeta? - e Manoel viu por onde ia a poesia dos desacontecimentos...

Entrou no carro, acompanhado pelos brutos homens. Olhou a fazenda Santa Cruz, o Pantanal que lhe conhecia a alma. A sua mulher assustada. Desentendeu tudo mais uma vez, se agarrou na volta de árvore, os olhos ficaram pra trás enquanto o carro ia. O levaram, estavam convencidos que era um voluntarioso da mentira.

E lá foi ele, envolto em teia, ele que tinha peitado com flor o mundo e disse: "tem mais presença em mim aquilo que me falta"

Os desacontecimentos tendem a ser mais numerosos e atrapalhar as ruas enlamadas do sincero.

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